O ativismo político na música erudita
Jorge
Antunes
Maestro,
compositor, membro da Academia Brasileira de Música,
Pesquisador
Sênior da UnB, Pesquisador A do CNPq
Fonte:
Revista Continente, edição 139, julho de 2012
O
rap
surgiu na Jamaica na década de 1960, foi levado para os Estados
Unidos dez anos depois e, em seguida, se espalhou pelo mundo. A
burguesia ficou apavorada. As
letras da nova manifestação artística falavam das dificuldades da
vida dos habitantes de bairros pobres. O protesto social, a
irreverência e a pregação da violência chegaram a amedrontar os
donos do poder.
Mas
o poder de fogo do rap começou a cair quando, na
década de 1990, o gênero despertou o interesse da indústria
fonográfica. Hoje, completamente recuperado, tornou-se manifestação
comercial e foi absorvido pelo sistema. Dessa forma, as falas
ritmadas do MC já não assustam a ninguém. Tudo se tornou banal,
comercial e bom para dançar. Não são apenas os jovens pobres que
dançam. As dondocas e as patricinhas também entram na onda. O rap
de protesto e o funk se fazem presentes até mesmo nas novelas da TV
Globo.
Platão,
em seu programa ético-musical da República, estudou as reações
emotivas da massa popular. Jean-Jacques Rousseau, no século 18,
detalhou alguns aspectos do fenômeno, lembrando que o intervalo de
terça maior excita o sentimento de alegria, podendo chegar a
imprimir ideias de furor. A terça menor, ao contrário, leva as
massas à tristeza, despertando ternura e suavidade. Não é à toa
que todos os hinos nacionais, além de usarem ritmo marcial, são
escritos em modo maior. Observa-se, por outro lado, que quase todos
os cantos religiosos e fúnebres são em modo menor. As reflexões de
Platão e Rousseau se juntam a muitas outras que se seguiram, para
demonstrarmos o poder de fogo que a música tem para influir nos
destinos do homem e para formar mentalidades. Sou daqueles que
acreditam que a vida imita a arte.
Em
1966, quando a ditadura militar reprimia violentamente as
manifestações estudantis na Cinelândia, no Rio de Janeiro, escrevi
uma obra para orquestra de cordas e fita magnética intitulada
Dissolução.
Como eu já estudava Física, todo mundo pensava que o título de
minha peça tinha conotação extra-musical com algo de científico,
de Química: a “dissolução” de alguma substância em
laboratório. Mas, na verdade, a conotação era política e de
contestação. Na obra tento descrever, com sons, a dissolução,
feita pela polícia, de uma manifestação estudantil na rua. Na
fita, além de sons eletrônicos, uso ruídos dramáticos de vidraças
quebradas.
Naquela
época não era fácil se fazer música engajada politicamente. Eu
conseguia fazer, mas sempre de modo velado, disfarçado. A censura e
a perseguição caiam sempre sobre qualquer obra de arte que
insinuasse, em seu conteúdo ou em seu título, algo referente às
questões sociais e políticas. Os autores de obras daquele tipo,
então consideradas subversivas, passavam a ser perseguidos pelo
donos do poder e até mesmo discriminados pelos próprios colegas
artistas. Quem era amigo de um subversivo, corria risco de também
ser considerado subversivo.
Hoje,
os historiadores são sempre limitados quando analisam a censura
praticada contra a produção cultural na época do regime militar.
Eles se atêm ao estudo da repressão sofrida pela imprensa, pela
literatura e pela música popular. Desconhecem, totalmente, a censura
que foi imposta, pelo regime militar, à música erudita brasileira.
Em
abril de 1964 minha canção Cabra
da Peste,
escrita para voz de barítono e piano, foi censurada pela direção
da Rádio MEC do Rio de Janeiro. Para que fosse tocada no programa
Jovens
Compositores do Brasil,
produzido por Dieter Lazarus, fui convidado a fazer nova gravação
nos estúdios da rádio, desde que mudasse a letra da música.
Não
faltaram, no passado, histórias de compositores brasileiros, na área
da música erudita, que viveram uma fase de ativismo político
através da música. Cláudio Santoro compôs, em 1953, sua Quinta
Sinfonia,
também conhecida como Sinfonia
da Paz,
com texto da poetisa comunista Antonieta Dias de Moraes. Gilberto
Mendes, que à época estudava com Santoro, também escreveu canções
engajadas politicamente usando poemas da mesma autora. Da mesma época
data a obra Canto
do Soldado Morto,
de Eunice Katunda, com texto do poeta comunista Rossini Camargo
Guarnieri. Por volta de 1973 o compositor paulista Willy Corrêa de
Oliveira passou a compor unicamente obras musicais com fins de
doutrinação política, militando junto às Comunidades Eclesiais de
Base. Mas essa postura foi abandonada alguns anos depois.
Esses
exemplos correspondem a fatos esporádicos e efêmeros, ocorridos
circunstancialmente nas vidas daqueles compositores. Alguns deles,
logo após aquelas experiências, voltaram a fazer arte pela arte.
Outros chegaram até mesmo a virar casaca e condenar aquelas suas
próprias posições do passado. Esse foi o caso, por exemplo, de
Claudio Santoro. Em 1979, num debate realizado durante a Bienal de
Música Contemporânea Brasileira, Santoro declarou
que renegava todo aquele passado de engajamento político e que se
arrependia de ter defendido ideias de esquerda e de tê-las embutido
em algumas obras.
Assim,
são raros, no Brasil, casos de compositores de música erudita que
abraçaram e nunca mais abandonaram o ativismo político por meio da
música, tal como aconteceu em outros países. Podemos citar, como
exemplos dessas exceções: o alemão
Hanns Eisler, o inglês Cornelius Cardew, o italiano Luigi Nono, o
chileno Sergio Ortega, o italiano Luca Lombardi, o austríaco Wilhelm
Zobl, o grego Thanos Mikroutsikos e o norte-americano Frederick
Rzewski.
Intelectuais
sempre tiveram, e continuam a ter, enorme responsabilidade com
relação ao presente e ao futuro da humanidade. São eles os que,
detentores de credibilidade, conseguem tribunas e espaços para fazer
eco às suas convicções políticas. Por essa razão acredito ser
obrigação do compositor não se encerrar em uma torre de marfim. O
compositor que se tranca em torre de marfim é um compositor
criminoso.
A
música popular, mesmo aquela de protesto, sempre foi rapidamente
adotada como mercadoria pela indústria fonográfica. O rap e o funk
também seguiram a mesma trajetória. Mensagens políticas
construídas para a venda, não convencem a ninguém.
A
música erudita moderna e de vanguarda é a única vertente musical
que resta, ainda hoje, não recuperada pelo sistema. Assim, ela passa
a ser, ou a continuar a ser, o único suporte capaz de dar
credibilidade a mensagens extra-artísticas de cunho social ou
político.
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